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Noite de Natal
Era noite de Natal, mas só a certa altura é que de tal se apercebeu, estranhando ainda assim tal esquecimento, não porque para si fosse um evento especial – há muito que não o era – mas porque lhe restava ainda o orgulho da ordem que mantinha na sua vida e pensamentos, tudo bem organizado, para evitar surpresas que não adviessem de situações absolutamente imprevisíveis.
Embora por outro lado notasse como o tempo passava cada vez mais depressa, como se semanas passassem em dias, e já era Outono, quando mal se lembrava de estar a começar o Verão, e entretanto, viera o Inverno, e era Natal.
Desconcertante também reflectir sobre o seu passado e vida. Vivera para o trabalho, fora casado, mas não tinham tido filhos e a mulher cansada de estar só, deixara-o a tempo de começar uma nova vida com outro. Quase não notara a sua ausência, como não vivia a sua presença. Com a reforma tivera tempo para organizar os seus papéis, mas para quem antes era tão activo, via-se sem energia para o que se propusera fazer.
E porque estava introspectivo ou porque queria de alguma forma assinalar aquela noite, decidiu ir procurar fotografias antigas. Tinha-as guardadas numa caixa no guarda-fatos do quarto de visitas, que nunca chegara a ser usado. Nesse quarto enfiara a mobília antiga, herdada de uma tia, a contrastar com o resto da casa, de linhas modernas e práticas. Não ligou a luz quando entrou, bastava-lhe a luz do hall, mas foi então que ao olhar para o enorme espelho da porta, lhe pareceu mole e liquido, ao invés da superfície dura e fria, normal para qualquer espelho ou vidro. Sem pensar ergueu o braço direito na sua direção e os seus dedos não encontraram resistência…
Podia ter recuado, saído do quarto, fechado a porta, esquecido o que se passara, convencer-se que estava meio a dormir ou tivera uma quebra de pressão, não voltar mais ali.
Contrariamente ao que sempre fizera, pensar e planear, antecipar e prever o que seriam problemas para desatar os nós e evitar que sequer surgissem, avançou pelo espelho e saiu do outro lado.
Caiu ao chão, viu o joelho esmurrado e não ligou. Havia ali luz, calor e grande confusão de sons. O primo Rui (morrera em criança há tantos anos) olhava-o curioso. Levantou-se e viu-se da altura dele. Aos sete anos tinham ido passar a noite de Natal a casa daquela tia. Ele e o primo tinham ido procurar presentes escondidos no quarto dos tios, mas não encontraram nada. Voltara a essa noite e os pais deviam estar lá em baixo. Olhou para o espelho atrás dele. Poderia atravessar de novo para a sua vida previsível e vazia, mas não queria. E se fosse para esquecer tudo o que vivera depois, como se nem sonhos fossem, talvez pudesse seguir outros caminhos, que não fossem seguros, mas de afectos, e naquela noite, mais do que qualquer prenda que fora procurar com o primo, só queria ir abraçar os pais.
E foi.




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